Viver é como ouvir música
- Hudson de Pádua Lima
- 23 de jul.
- 4 min de leitura

Viver é como ouvir música. Pode ser uma atividade passiva, na qual você só deixa a música passar por você e você pode nem ter escolhido o que está tocando. Mas também pode ser uma atividade reflexiva, contemplativa, estética, política, divertida, performática, competitiva, espiritual...
A vida é arbitrária, como a música. Teoricamente, você pode ouvir o que quiser... se tiver os meios para isso. Teoricamente, pode escolher entre qualquer artista e estilo musical... pode ouvir nos seus fones de ouvido ou em caixa de som, deixar como plano de fundo e fazer outras coisas ou fazer da música em si a sua atividade principal.
Mas na prática, nem sempre você terá os meios. Na vida real, pessoas com caixas de som gigantes poderão se dar ao direito de ouvir a música deles mais alto que a sua. Algumas pessoas realmente mesquinhas poderão debochar da música que você decidiu ouvir, argumentando que a deles é muito melhor. E pior, você pode acabar acreditando nisso.
A música é arbitrária, é arte. Teoricamente ela não é um serviço. Ela não se presta a nada especificamente, exceto a emocionar. A tocar a alma, nas mais variadas formas, nos mais diversos graus, em todas as nuances entre a luz e a sombra, entre o belo e o grotesco, o sublime e o fúnebre.
Você pode ouvir e montar sua própria playlist, muito embora a cultura e a sociedade tentarão intervir nas suas escolhas. Dirão a você o que deve ouvir. Dirão que algumas músicas são melhores que outras e que se você quiser determinados resultados, deve ouvir necessariamente uma ordem de faixas e artistas. Você talvez até aprenda a gostar deles e muito possivelmente se esquecerá que não foi uma escolha sua tocá-los, no início. Pode convencer-se de que realmente gosta deles e era a escolha mais sensata possível, afinal, os resultados prometidos vieram. Será?
E se você ouvir só o que te dá vontade? E se você ouvir no Repeat mil vez o mesmo álbum, porque é seu preferido e você não deve satisfação pra ninguém? Às vezes você pode, entretanto, ficar preso no Repeat, seja porque está sem rede, ou porque só sobrou aquele CD...
Uma música, por mais boa que seja, sempre é seguida de outra, se você deixar rolando. Você pode deixar tocando um mesmo artista ou gênero musical, mas acaba percebendo que muito do mesmo cansa. Às vezes o que torna uma música boa é justamente o fato de ela ser precedida e sucedida de várias outras, menos empolgantes. O contraste mostra como ela é especial.
Algumas vezes você ouve uma música pela letra, outras, pela melodia... ahh, mas que prazer é poder ouvir por ambas!
Tem um fenômeno fantástico e enervante que é ouvir uma música incrível em público ou como trilha sonora de um filme e nunca mais encontrá-la. Mas algo dela ficará para sempre na sua memória e será incrível voltar a ouvi-la quando você menos esperar.
De fato, a magia da música está no que ela é capaz de fazer com a sua memória. Você grava momentos inteiros junto com uma música e pode revivê-los apenas dando Play. Isso às vezes se torna uma maldição, pois você quer esquecer, mas a música não deixa.
Você já parou pra pensar quanto da sua memória se presta a gravar letras e melodias? Em como esse "conhecimento" está gravado dentro de você, independente da sua vontade consciente em fazê-lo? Deve ser importante, se o cérebro se dá ao trabalho... ou não. Quem sabe ele apenas coleciona músicas como quem coleciona qualquer outra coisa. Seu repertório musical faz de você quem você é. Há todo um universo conhecido e um maior ainda, desconhecido. A música nunca vai acabar, atrevo dizer, enquanto houver vida. Elas são expressões da mesma coisa, do mesmo fenômeno. O choro de um bebê é música aos ouvidos de sua mãe. A sirene de uma ambulância é a trilha sonora trágica do trânsito. O apito do trem é o som nostálgico do fim de tarde após o trabalho...
Não sei se você entendeu o que eu quis dizer até aqui. Talvez tivesse sido melhor se fosse uma canção e não um texto. Mas música também é texto e a melodia eu deixo com você. Você pode estar num bom momento e sentir-se inspirado pelas minhas palavras. Pode achá-las confusas e dispersas ou até mesmo melancólicas e depressivas. Eu senti várias coisas escrevendo, muito embora eu estivesse em silêncio. A inspiração veio antes, caminhando e ouvindo música. Primeiro numa playlist, depois, no aleatório... Aleatoriedade... algoritmo... recomendações. Como eu disse, uma música sempre leva a outra. Nem sempre é uma escolha, nem sempre é bom. Nem sempre dá pra voltar atrás.
E os surdos? - poderiam me perguntar. Música é vibração. Sei que Beethoven continuou a compor mesmo depois da perda auditiva. Mas também fico me perguntando o que o silêncio deve lhes falar. Às vezes o silêncio é ensurdecedor. O silêncio é necessário entre uma faixa e outra, justamente para separá-las e proporcionar-lhes a individualidade. O silêncio nunca é realmente absoluto. Como eu disse, som é vibração... enquanto houver algo vibrando e alguém capaz de ouvir, aos seus ouvidos, isso será algum tipo de música. Não sei de que qualidade, não sei se valerá a pena. Se nem todos ouvem, não direi que ouvir é viver. Direi que viver é sentir. E se isso passa pela música, agradável surpresa.
Hudson de Pádua Lima Psicólogo 06/165910
São Carlos (SP)





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